Utilitários Contábeis
Lucro contábil x lucro tributável
Desde 1978, o lucro fiscal nas empresas tributadas pelo denominado “lucro real” (na época dizíamos que era por conta do Rei Leão…) se baseia, inicialmente, na figura do lucro apurado pela contabilidade escriturada segundo a Lei e as normas infralegais pertinentes (Lei 6.404/76 e D. Lei 1.598/77).
Desde o início, é claro, necessidades sempre existiram de se ter ajustes ao lucro contábil para se chegar ao lucro tributável. Achávamos muitos, só que éramos felizes e não sabíamos. Na verdade, apesar de a 6.404 haver obrigado à segregação entre a contabilidade e a legislação fiscal, o que ocorreu foi que o Fisco continuou influenciando fortemente nossa contabilidade, já que mudanças contábeis que aumentassem o lucro contábil eram, via de regra, automaticamente tributadas. Com isso nossa contabilidade de certa forma se estagnou.
Entre 2008 e 2010, com as Leis 11.638/07 e 11.941/09, e depois a 12.973/14, a legislação fiscal passou a não mais influenciar (exageradamente pelo menos) a contabilidade societária. E VIVAS à Receita Federal do Brasil que incorporou essa nova filosofia.
Mas, com essas leis, inclusive alterando a das SAs, ocorreu algo relevante. A contabilidade deu saltos extraordinários, passando a incorporar totalmente as normas internacionais de contabilidade (IFRS) adotadas por mais de 140 países. Só que a legislação fiscal aceitou um número bem pequeno dessas evoluções (para o bem e para o mal dos contribuintes – imaginou tributar acréscimo por valor justo de determinados ativos?).
Com isso, o que ocorreu é que aumentou drasticamente o volume de controles contábeis por conta do incremento dos ajustes a serem feitos para se sair do lucro contábil e chegar ao lucro tributável. E isso vem trazendo problemas para ambos os lados: de um, o das empresas, com complexidade e incremento de investimentos em sistemas para implementação dos controles; por outro, complexidade e dificuldade por parte da fiscalização para acompanhar todos esses ajustes.
Desde 2019 a Receita Federal, numa atitude democrática digna de todo o louvor, vem propondo ideias para se reduzir essas divergências. Por exemplo, duas contabilidades totalmente separadas (o pior dos mundos na minha opinião); ou então uma tal de Demonstração do Lucro Fiscal, onde o lucro tributável não nasceria do lucro contábil, mas a partir de puxadas de saldos de algumas contas e de outras fontes (receitas a partir dos controles de notas fiscais, por exemplo).
Outra ideia discutida: inversão de procedimento, escriturando-se a contabilidade pelos critérios fiscais e depois, em registros auxiliares, ajustes para se chegar ao lucro contábil segundo as IFRS; esta última alternativa, chamada de LALUC (livro de apuração do lucro contábil) seria nos modelos do atual LALUR (livro de apuração do lucro… do Rei Leão), chegou a constar da Lei 11.638/07, mas foi revogada no ano seguinte. Facilitaria todo o trabalho da RFB, mas poderia induzir muitas empresas não subordinadas a órgãos reguladores a ficarem só com a contabilidade fiscal, o que seria um retrocesso inaceitável para o país na nossa opinião.
Tem-se procurado fazer com que a Receita Federal também ofereça algo para, numa negociação democrática com as empresas, uma chance de forte redução dessas diferenças entre os dois lucros ocorra. Por exemplo, porque ela não aceita para fins fiscais a figura do AVP – ajuste a valor presente, que implica em milhares e milhares de controles dos estoques de matérias-primas, mercadorias, produtos acabados, custo dos produtos vendidos, depreciações etc.? E por que não aceita a nova norma sobre aluguéis e arrendamentos que substituiu a despesa ou o custo de aluguel pela soma da depreciação dos ativos representativos dos direitos de uso e das despesas financeiras dos passivos de arrendamento? E assim podem ser discutidos outros pontos de reaproximação entre os dois lucros.
Quem sabe uma combinação dessas alternativas e outras possam surgir, porque a Receita está por demais preocupada com a situação, e está aberta à conversa; mas não podemos correr o risco de qualquer mudança nessa política de diálogo aberto e democrática por algo instituído de forma unilateral. Vamos sentar, dialogar e, provavelmente, tomar boas iniciativas! Mas há que se agir rápido. O Rei Leão está sorrindo, mas está incomodado; e as empresas estão gastando tempo e dinheiro com as diferenças de hoje.
* Eliseu Martins é professor emérito e professor sênior das FEAs-USP de São Paulo e Ribeirão Preto. Ex-diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e do Banco Central.
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