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A nova cara do trabalho no Brasil
Ao terminar a graduação em 2020, em meio à pandemia de covid-19, o engenheiro soteropolitano Igor Brito Correia Andrade, de 27 anos, logo começou a trabalhar na área, mesmo em um contexto adverso. Contudo, a experiência durou pouco: apenas nove meses depois o ainda recém-formado ficou desempregado. Tentou se recolocar, mas sem sucesso. Viu-se, então, obrigado a procurar outro meio de garantir sustento — desde abril de 2022, trabalha como motorista de aplicativo na capital baiana. “A falta de experiência faz com que os salários oferecidos sejam muito abaixo do que o que ganho atualmente como motorista”, afirma, ao ponderar que não pretende mais procurar uma vaga na área em que se formou. “Penso mais em usar o ensino superior para concorrer a vagas em concursos públicos”, ressalta. Batizada de “uberização” pelos acadêmicos da Sociologia do Trabalho, essa é uma das caras do atual mundo do trabalho, que vê uma melhora importante dos indicadores de desemprego, mas sofre com a qualidade das ocupações e dos vínculos ofertados.
No trimestre encerrado em junho de 2024, o último dado disponível, a taxa de desocupação caiu para 6,9%, a menor para o período desde 2014, que também foi de 6,9%, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Com isso, o indicador está abaixo da metade da maior taxa da série histórica, de 14,9%, registrada entre janeiro e março de 2021, durante a pandemia. A população desocupada — aquela que procura por trabalho — caiu para 7,5 milhões de pessoas, com redução de dois dígitos tanto na comparação trimestral (-12,5%) quanto na anual (-12,8%), o menor número de pessoas em busca de ocupação desde fevereiro de 2015. Enquanto isso, a parcela ocupada atingiu novo recorde da série histórica, chegando a 101,8 milhões. Atualmente, o total de trabalhadores no País é 3% maior que há um ano.
Segundo Adriana Beringuy, coordenadora de Pesquisas por Amostra de Domicílios do IBGE, no segundo trimestre deste ano, o emprego cresceu em diversos recortes da população, tanto entre jovens como nos grupos etários mais velhos. O nível da ocupação, apesar de muito superior entre as pessoas brancas, também expandiu entre pretos e pardos. Boas notícias também no recorte por gênero: as mulheres atingiram o maior nível de ocupação desde 2012, com 48,1%. “Vale ressaltar, porém, que, entre os homens, esse indicador segue aproximadamente 20 pontos porcentuais acima, atingindo 68,3%”, explica Adriana.
O levantamento do IBGE se baseia na declaração das pessoas, se elas se consideram com ou sem trabalho — ou, ainda, se estão em busca de um emprego, o contingente considerado desocupado. Por isso, entram na conta ocupações de toda natureza, sejam as com carteira assinada, prestadores de serviços (os famosos os “PJs”), ou ainda autônomos e pequenos empreendedores. Mesmo assim, pelo dado do IBGE, é o trabalho com carteira assinada que tem sustentado a redução do desemprego. Ainda de acordo com o IBGE, o número de empregados do setor privado (52,2 milhões) foi recorde, motivado pelos novos desempenhos superados nos contingentes de funcionários com carteira (38,4 milhões). Mas o grupo sem registro ainda é grande, 13,8 milhões. “Observa-se a manutenção de resultados positivos e sucessivos. Esses recordes de população ocupada não foram impulsionados apenas nesse trimestre, mas são consequência do efeito cumulativo de uma melhoria no mercado de trabalho em geral”, destacou Adriana, à época da divulgação do estudo, no fim de julho. Além disso, segundo os dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), em que o Ministério do Trabalho compila os números de contratações e demissões fornecidos pelos empregadores, o saldo foi positivo em 201 mil vagas, número 29% maior que um ano antes.
O que explica os dados
O professor José Pastore, presidente Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), considera que essa retomada do mercado de trabalho seja reflexo de uma junção de fatores. “Neste ano, tivemos ativação de muitas obras por prefeitos e governadores por causa das eleições. Infraestrutura e obras em geral ativam também vários setores da economia”, explica o sociólogo. Além disso, os governos fizeram muitas contratações. Pastore comenta, ainda, que o aumento do valor do Bolsa Família, que passou para R$ 600 no ano passado, também contribui para o aumento do consumo das famílias e, consequentemente, para a geração de emprego. Por fim, diz o professor, o Agronegócio, que não foi afetado pelo El Niño como previsto, manteve a expansão ao permitir que o Brasil exportasse mais e, portanto, gerasse mais vagas diretas e indiretas. Além disso, a exportação de minérios também se manteve forte.
Um olhar sob perspectiva mais abrangente traz alívio para um indicador que foi um dos mais penalizados pela pandemia. Afinal, setores que são bons geradores de emprego, como Construção, Serviços e Comércio, sentiram fortemente o baque da covid-19. No entanto, maior oferta de trabalho não tem se traduzido em aumento da renda — condição que, de fato, faz a economia girar. Os dados do Caged mostram que o salário médio do brasileiro, em junho, foi de R$ 2.132,82, uma alta de apenas 2,07% na comparação com o mesmo mês do ano passado. Para se ter uma ideia, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que mede a inflação oficial do País, foi de 4,5%, em 12 meses encerrado em julho, último dado disponível. Diante disso, Pastore explica que, de modo geral, o mercado laboral apresenta uma pirâmide dividida da seguinte forma: dois terços das pessoas estão em funções muito simples, com baixos salários e alta rotatividade. O um terço restante é formado por profissionais qualificados e remuneração melhor. E nessa faixa, a bonança do emprego não vem tão forte. Então, fica mais difícil para profissionais como Igor se recolocarem, especialmente quando o salário oferecido entra na equação e torna a informalidade mais interessante.
Caderninho azul
Se, em 2020, vivíamos um recorde de desemprego, chegamos a 2024 com outro cenário, mas ainda frente a um problema grave e crônico no Brasil: a informalidade no mercado de trabalho. Um funcionário que se declare ocupado não necessariamente tem o carimbo desejado na carteira — ou, ainda, mesmo que o tenha, às vezes é preciso recorrer aos “bicos” para complementar a renda.
De acordo com Pastore, da FecomercioSP, a má qualidade do emprego está na raiz do problema, ao passo que faltam ao trabalhador, além de qualificação formal, habilidades como concentração, repertório, comunicação e intimidade com a tecnologia. Afinal, 75% da força laboral tem, no máximo, o ensino médio. “A qualidade do emprego é historicamente atrelada à matriz do nosso sistema produtivo, historicamente focado em cana-de-açúcar, minérios e café, por exemplo. Atividades que requerem pouca sofisticação. Para mudar isso, é preciso de tempo, crescimento econômico e diversificação da produção, o que incluiria mais pessoas nos serviços especializados”, diz. Na prática, o que o sociólogo explica é que, para além de como o mundo do trabalho brasileiro se constitui, também surgiram novas formas de trabalhar que, em sua maioria, não se encaixam na CLT.
Adriana, do IBGE, reforça que a população formal vem crescendo em ritmo maior que a informal. Entre o primeiro e o segundo trimestres, os informais cresceram 1%, enquanto os formais, 2%. Os dados apontam ainda que a taxa de informalidade ficou em 38,6% do total de ocupados, contra 38,9 %, no trimestre encerrado em março, e 39,2 %, no mesmo trimestre de 2023. No entanto, ainda que Pastore reconheça que a formalização esteja avançada, ele ressalta que a maioria dos novos cargos é de baixa remuneração. “O trabalho por conta própria, que cresceu muito durante as crises, se mantém praticamente estável desde o fim do ano passado, e esse é um dado bastante positivo. Pode indicar tendência boa, mas precisamos esperar, porque é pouco tempo”, avalia o professor Marcelo Manzano, presidente do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit).
Segundo Lúcia Garcia, economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), é fato que o Brasil tem recuperado engajamento, mas a degradação das relações prejudicou o mercado de trabalho por anos. A economista avalia que, a partir da Reforma Trabalhista, houve uma espécie de “estabilidade ruim” e, em seguida, veio a pandemia, que freou de forma brusca a atividade econômica. Isto é, para ela, somente agora estamos recuperando os patamares de 2015.
O setor privado está gerando vagas, mas em geral com vínculos intermitentes e baixos salários. Essa seria uma das razões pelas quais o País não consegue absorver a força laboral capacitada pelo diploma universitário. “Melhoramos, mas não estamos animados, pois o mercado vem nessa retomada, mas com perda de direitos”, avalia Lúcia.
Mais alento
Outro tópico apontado pelos especialistas é a redução no desalento. Esse dado é importante porque significa que pessoas que haviam desistido de buscar ocupação retomaram a procura diante de números mais animadores. E, mesmo com esse acréscimo, o desemprego segue sob controle: essa parcela desalentada recuou para 3,3 milhões, no trimestre encerrado em junho, alcançando o menor contingente desde o trimestre encerrado em junho de 2016 (3,2 milhões), com quedas de 9,6% (menos 345 mil pessoas) no trimestre e 11,5% (menos 422 mil pessoas) no ano. Com isso, o porcentual de pessoas nessa situação (2,9%) foi o menor desde o trimestre encerrado em maio de 2016 (2,9%). Esse indicador cresceu de 1,6% para 3%, ainda de 2015 para 2016, e atingiu o pico em 2020, com 5,5%. Segundo Adriana, do IBGE, “a redução do desalento pode estar relacionada à melhoria das condições do mercado laboral como um todo, possibilitando que esse contingente retorne à força de trabalho. E como há redução da população desocupada, a queda do desalento provavelmente é proporcionada pelo aumento da ocupação”. O chamado desemprego de longa duração — quando alguém busca recolocação por dois anos ou mais — também caiu para o menor patamar desde 2015.
No entanto, os especialistas alertam que os problemas estruturais do mercado de trabalho persistem e são expressivos em comparação a países mais avançados. Aqui, entra em cena a taxa de subutilização da mão de obra (quando alguém se considera ocupado e, logo, fora da taxa de desemprego), mas trabalha menos horas do que gostaria ou precisaria para uma renda adequada. Hoje, são 5 milhões de pessoas, 4,1% menos que há um ano. “Essa taxa, que caiu muito nos últimos dois anos, chegou a 16,9%. Contudo, essa população desalentada, que inclui as pessoas que querem trabalhar, mas desistiram e não têm dinheiro nem para pegar ônibus, ainda está em torno de 3 milhões”, alerta Lúcia, do Dieese.
Para Manzano, do Cesit, é preciso ter políticas para enfrentar essa situação. E lembra que o Microempreendedor Individual (MEI), por exemplo, é uma tentativa válida para inserir autônomos no sistema previdenciário — porém o desafio continua, pois não se trata apenas de regulamentação trabalhista, mas também de toda a estrutura produtiva do País: quanto menos sofisticada, pior a qualidade do ofício ofertado.
Da desindustrialização à Uber
O fato é que o setor industrial — que, tradicionalmente, emprega profissionais mais qualificados, formais e com melhores salários — encolhe ano a ano. A última Pesquisa Industrial Anual (PIA), divulgada no fim de junho pelo IBGE, mostra que, de 2013 a 2023, o emprego industrial encolheu 8,3%, uma perda de 745,5 mil postos diretos. Um dos caminhos para reverter esse processo é a reindustrialização, com vistas à produção de bens de maior valor agregado, tanto para abastecer o mercado interno quanto para uma inserção qualificada no cenário internacional. “Cerca de 50% dos motoristas de aplicativo têm ensino superior. Essa é uma evidência de que não é falta de qualificação, mas de oportunidade. Isso gera desânimo e frustração. Existe o discurso de que precisamos qualificar o trabalhador, o que é fundamental. Mas, por outro lado, falta uma economia que ofereça oportunidades”, afirma Manzano. Para ele, essa é a raiz de um mercado que cresce de forma vigorosa apenas na base da pirâmide.
E quando se fala de qualidade do emprego, a remuneração não define a equação. Segundo os dados do estudo Plataformização e Precarização do Trabalho de Motoristas e Entregadores no Brasil, que compõe a 77ª edição do boletim Mercado de Trabalho, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a adesão de motoristas à função mediada por aplicativos resulta em jornadas mais longas e menor contribuição previdenciária, além da queda da renda média desses trabalhadores. Entre 2012 e 2015, enquanto o total de autônomos no setor de transporte de passageiros (não inclusos os mototaxistas) era de cerca de 400 mil, com rendimento médio flutuando em torno de R$ 3,1 mil. Em 2022, quando o total de ocupados chegava a quase 1 milhão, o rendimento médio era inferior a R$ 2,4 mil. Nessa mesma categoria, a proporção de funcionários com jornadas entre 49 e 60 horas semanais passou de 21,8%, em 2012, para 27,3%, dez anos depois. No mesmo período, essa expansão não se repetiu entre os autônomos de modo geral. Outro aspecto que revela essa precarização é a cobertura previdenciária. Em 2015, pouco menos da metade dos motoristas de passageiros (47,8%) contribuía, porcentual que despencou para somente 24,8% em 2022.
André Gambier Campos, pesquisador do Ipea, garante que a economia exportadora continuará a gerar empregos, assim como os setores primários de Extração Mineral, Agronegócio e Energia. Na indústria, a expansão pode vir da Tecnologia da Informação (TI), embora a qualidade desses empregos ainda seja incerta. Campos também aponta para o potencial dos serviços sociais (como educação, saúde, previdência e cultura), que devem crescer em virtude do envelhecimento da população e da queda na taxa de natalidade. Segundo ele, a fragmentação do mercado laboral teve início com a Reforma Trabalhista, de 2017, que desencadeou um movimento de mitigação de direitos, culminando, por exemplo, na validação de PJs pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Uma complexa transformação que revela os diversos impasses e perspectivas que moldarão o futuro do trabalho no País.
Demissão por escolha
Um levantamento inédito elaborado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) mostrou um interessante fenômeno no pós-pandemia: o aumento nos pedidos de demissão voluntária, quando o desligamento parte da vontade do trabalhador e não do contratante. Os motivos são múltiplos, mas a pesquisa mostra que insatisfação com o salário, falta de reconhecimento, problemas com o chefe e questões éticas são as principais causas.
Em 2023, o Brasil bateu o recorde de demissões voluntárias, com 7,4 milhões de trabalhadores (34%) pedindo as contas, alta de 7,9% em relação ao ano anterior. De janeiro a junho de 2024, já foram registrados 4,3 milhões de pedidos, 36% de todos os desligamentos no período.
Um aspecto interessante é que, dos demissionários, ainda que 71% relatassem não contar com apoio familiar ou renda própria, arriscaram pedir demissão. Além disso, 76% estavam satisfeitos com a decisão.
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