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ECONOMIA - Empresários estão preocupados com o fluxo de caixa no pós-pandemia
Criada em 1987, a Gráfico Empreendimentos, empresa do setor de construção civil com sede em Salvador (BA), conseguiu passar pelo período de pandemia, a partir de março, sem grandes dificuldades para manter as atividades. Além de medidas para preservar a saúde dos funcionários, a empresa adiou o pagamento da contribuição previdenciária e prorrogou o recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), seguindo medidas emergenciais adocnitadas pelo governo federal. Ainda que não tenha tido problemas de fluxo de caixa até agora, a empresa está preocupada com o pós-pandemia.
Sócio e diretor da Gráfico, Carlos Henrique Passos, diz que o setor tem hoje duas grandes agonias em relação à recuperação da economia: o preço de produtos de construção civil, como o cimento, que vem aumentando, e o comportamento dos clientes nos próximos meses. “Cerca de 14 milhões de trabalhadores tiveram redução de jornada ou suspensão do contrato de trabalho. Agora, ainda que estejam voltando ao trabalho, alguns deles vão perder o acesso a recursos das medidas emergenciais”, explica.
O executivo considera que o cenário continua sendo de muitas incertezas, que só aumentam com a decisão do governo de reduzir a injeção de recursos na economia por meio de ajudas temporárias. “Acho que precisaria haver um plano de desligamento de forma mais suave. Os impostos foram diferidos, mas agora é preciso pagá-los. Depois de suspender o contrato de trabalho dos empregados, você agora vai receber os empregados e pode ser que a economia não esteja rodando ainda para aquela empresa. Ela tem que bancar folha e impostos com dificuldades de crédito porque o sistema bancário, mesmo com esse esquema de proteção de risco, ainda roda com dificuldade de acesso para as empresas”, diz Passos, ao explicar todas as incógnitas de uma equação que preocupa dirigentes de muitas empresas neste momento de retomada mais intensa das atividades após o que parece ter sido a pior fase da pandemia.
Mesmo atuando no mercado há mais de 30 anos, a Gráfico Empreendimentos está negociando um crédito no mercado financeiro, mas enfrenta dificuldades com relação às garantias: “Ainda tem um ambiente de incerteza muito grande e os bancos travam as operações”, lamenta Passos. Segundo ele, as medida adotadas pelo governo foram dimensionadas considerando um período de 70 a 90 dias e as restrições adotadas em função da pandemia já superam esse prazo.
Com dados mais amplos sobre a realidade de todo o setor produtivo brasileiro, o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Braga de Andrade, faz avaliação semelhante e afirma que, no atual momento, o que as empresas mais necessitam é crédito. “Mais de 90% delas são micro e pequenas e, por isso, não têm musculatura para aguentar crises como esta. O enfrentamento dos impactos devastadores da pandemia da covid-19 exige medidas robustas para garantir a sobrevivência de milhares de empreendimentos e a manutenção de milhões de empregos. A principal dessas medidas é, sem dúvida, a facilitação do acesso ao crédito”, explica Robson Braga.
Diante do aumento dos riscos, segundo ele, as instituições financeiras se retraíram: “Por isso, é necessária a adoção de medidas extremas, para fazer com que o crédito, de fato, chegue às empresas a um custo baixo”.
Relaxamento de garantias
Na avaliação de Wagner Barbosa, CTO da Clamper, a questão do crédito tem que ser resolvida porque as empresas ficaram, por um período muito longo, faturando abaixo das previsões. “Tem que ter um instrumento de relaxamento das garantias. Isso tem que ser resolvido e quem resolve isso é o próprio governo”, afirma. “Essa questão da garantia é um ponto que, se você falar com dez empresários, todos os dez vão reclamar, porque eles não têm garantia para dar”, conta Barbosa. Ele também defende que algumas medidas emergenciais devem ser prorrogadas ou tornadas permanentes.
“Das medidas todas que o governo tomou, as trabalhistas foram as que tiveram um efeito imediato bastante positivo. Nós utilizamos essas medidas, tivemos redução de 25% da jornada de trabalho e realmente conseguimos segurar o caixa para passar pelo período mais agudo da crise”, relata o CTO da Clamper, que tem 400 funcionários. Com sede em Lagoa Santa (MG), a empresa atua no mercado de soluções para proteção de equipamentos eletroeletrônicos contra danos causados por raios e surtos elétricos. Com relação às medidas de estímulo ao crédito adotadas pelo governo, ele diz que a empresa tentou acesso ao benefício, mas não conseguiu utilizá-lo.
“Como somos uma empresa de inovação, estamos habilitados a usufruir de créditos com projetos na área de inovação, mas a gente sempre esbarra na questão das garantias”, afirma Wagner Barbosa. Segundo ele, praticamente todas as empresas de médio porte vivem a mesma situação a cada crise econômica. “Essa equação o governo ainda não conseguiu resolver. Há recursos no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), na Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e no Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), mas as empresas simplesmente não conseguem ter acesso em função da exigência de muitas garantias, seja com bens ou recibos de longo prazo”, reclama o executivo.
Financiamento estável
Além do acesso aos recursos para inovação, é importante haver estabilidade no volume de recursos para Pesquisas, Desenvolvimento e Inovação (PD&I). Em discussão no Senado Federal, o PLC 135/2020 propõe o descontingenciamento dos recursos do FNDCT, uma das principais fontes nacionais de recursos para ciência, tecnologia e inovação. O orçamento de 2020 prevê, aproximadamente, R$ 6 bilhões, dos quais cerca de R$ 4,3 bilhões estão destinados à reserva de contingência, o que na prática bloqueia cerca de 70% do total, que acabam ficando com o Tesouro Nacional.
Carlos Eduardo Abijaodi, diretor de Desenvolvimento Industrial da CNI, considera que a inovação pode ser um propulsor importante na recuperação da economia brasileira pós-pandemia. “O governo tem que apoiar os programas de inovação, sejam eles públicos ou privados, programas que a própria iniciativa privada quer começar a fazer. Tem que apoiar isso e também ver se pode injetar algum recurso nas fundações de pesquisa e desenvolvimento. Não resta dúvida de que a inovação vai ser um fator preponderante para essa retomada”, diz Abijaodi.
“Nós vamos encontrar o mercado doméstico reduzido porque o consumidor hoje vai ser mais seletivo, vai sair menos de casa, vai ter uma orientação mais direta do que ele quer porque a renda doméstica vai estar diminuída”, avalia o diretor da CNI.
Nesse cenário, “não adianta pensar só no mercado doméstico porque, apesar de ele ser grande, não vai estar em condições de absorver essa produção nacional. Tem que tentar também o mercado internacional, sair para exportar. Para isso precisamos de produtos inovadores, diferentes. Inovação não é só de tecnologia, mas de design e outras expressões criativas típicas dos brasileiros”, sugere Abijaodi.
Segundo ele, a crise causada pela pandemia da covid-19, ao provocar a suspensão de parte da produção na China, mostrou a diversos países a necessidade de ter uma política para estimular a produção industrial local, seja ela realizada por empresas nacionais ou multinacionais.
“Dentro desse pensamento de interrupção das cadeias produtivas que a pandemia gerou, o Brasil vai ter que passar a produzir internamente alguns produtos que importa. Nós tínhamos cadeias produtivas das quais o Brasil participava porque recebia insumos da China, coisas que só ela fabrica. Então houve a pandemia, a China parou de fabricar e o Brasil saiu da cadeia produtiva”, explica o diretor da CNI.
Desafios maiores
Na avaliação de Zeina Latif, consultora econômica, quando passar dessa fase emergencial gerada pela covid-19, os desafios para a retomada do crescimento econômico serão ainda maiores. “Há empresas em situação financeira muito difícil. Teve diferimento de impostos, renegociações de financiamentos e os bancos abriram espaços, mas tem uma hora que a fatura chega. Não podemos tirar conclusões apressadas, pois ainda temos um retrato muito heterogêneo; há empresas com muita dificuldade e a superação disso não será fácil”, avalia Zeina.
A consultora lembra que o período pós-recessão do governo Dilma Rousseff mostrou como foi difícil a recuperação, iniciada em 2017, após dois anos consecutivos de recessão. “Havia, ali, um cenário de empresas com dificuldades financeiras, consumidores com renda baixa e com medo de desemprego. A superação naquele momento não foi rápida”, lembra ela. Segundo Zeina, “há uma parcela de mão de obra que não vai arrumar emprego porque não está qualificada para o mercado de trabalho. E haverá empresas que, se não conseguirem se ajustar, também vão enfrentar dificuldades, empresas que fecharão suas portas e empresas que ainda vão enfrentar essas dificuldades porque não conseguem se ajustar às novas tecnologias”. Ao mesmo tempo, diz ela, é preciso prestar atenção às questões fiscais, que podem trazer consequências sobre o ambiente macroeconômico e dificultar ainda mais a recuperação.
O caminho para evitar essa contaminação, diz José Carlos de Martins, presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção Civil (CBIC), é avançar também nas reformas estruturais. “A reforma tributária é a principal delas, mas será necessária, ainda, uma reforma administrativa. Se nós não mudarmos agora, que é um uma época de dificuldade, nunca mais vamos mudar isso”, afirma.
Martins também está preocupando com o que classifica de “ressaca” pós-pandemia. “Um dia o cara está feliz, tranquilo, nem está pensando no dia de amanhã, mas depois vai enfrentar a ressaca de pagar os novos impostos e os que ficaram atrasados”, explica. Para evitar esse efeito, segundo ele, é preciso criar mecanismos para haver mais investimentos. “Não adianta estimular apenas o consumo. Tem que ter investimento, tem que ser aquilo que mexe na economia gerando emprego, dando continuidade”, defende o presidente da CBIC. Investir em infraestrutura, explica Martins, vai ajudar a aumentar a competitividade dos produtos brasileiros, além de contribuir para reduzir o chamado custo Brasil.
Fernando Pimentel, presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), ressalta que é necessária, também, uma transição entre esse período emergencial, que ainda não acabou, e o momento em que as empresas poderão retomar um ritmo de produção próximo do que havia antes da pandemia. Segundo ele, a proposta de regularização de passivos que está em tramitação no Senado (PLP 152/2020) pode ser a solução para ajudar as empresas a saírem de uma situação financeira complicada.
Regularização tributária
Apresentado pelo senador Chico Rodrigues (DEM-RR), o projeto trata do Programa Especial de Regularização Tributária em razão dos efeitos econômicos provocados pela pandemia de covid-19 e abrange débitos administrados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB) e pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). Na justificativa do projeto, Rodrigues argumenta que a pandemia da covid-19 tem causado efeitos nefastos na área de saúde pública e na economia em geral.
“Os efeitos econômicos são ainda mais agravados pelas medidas de distanciamento social”, explicou o senador. O projeto, que pode beneficiar pessoas físicas e jurídicas, inclusive as que estejam em recuperação judicial, prevê o parcelamento em até 60 meses de dívidas vencidas até 30 de abril de 2020, com o primeiro pagamento em janeiro de 2021.
Embora a Receita Federal tenha um programa permanente de renegociação de dívidas, Fernando Pimentel, da Abit, afirma que “neste momento é preciso de ter uma visão mais ampla e de dar um sossego às empresas para que possam cuidar da retomada da produção, estruturar seus passivos, voltar a funcionar suas máquinas, com todos os protocolos e cuidados. Não se trata, aqui, de um Refis, mas de uma reestruturação de crédito”.
Para ele, a retomada depende muito da consciência coletiva, não só da empresa que está cuidando e que dá todas as condições, mas também das pessoas que trabalham nas empresas, para que elas também se protejam e protejam aqueles que estão ao lado dela”.
Pimentel diz que outros países também estão adotado programas de transição para “ajudar as empresas com visibilidade, planejamento e previsibilidade”. Segundo ele, “o programa de renegociação de débitos já disponível na Procuradoria da Fazenda Nacional é inteligente, importante e deve continuar a existir, mas não substitui a necessidade de uma reestruturação mais ampla”. O presidente da Abit avalia que “até que a economia engrene, o que vai demorar um pouco, é preciso haver um programa de reestruturação de débitos tributários para ajudar as empresas com ações imediatas, que andem em paralelo com as estruturantes”.
Renato da Fonseca, gerente-executivo de Economia da CNI, explica que “a reforma tributária é essencial, mas, como não vai ser feita de hoje para amanhã, seria importante que houvesse um parcelamento dos tributos que foram adiados”. Segundo ele, duas outras propostas em discussão seriam muito efetivas nesse sentido.
Uma delas é um projeto apresentado pelo deputado federal Ricardo Guidi (PSD-SC), que propõe um refinanciamento de dívidas com o governo federal em função da pandemia. O parlamentar considera que, “diante de uma redução brusca do faturamento das empresas”, é preciso preservar os negócios para também assegurar a sobrevivência dos empregos.
A outra, de autoria da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), enviada ao governo federal, prevê um parcelamento tributário com descontos e maiores possibilidades de compensação. Pelo Programa de Renegociação Extraordinária de Dívidas com a União (PREX-Brasil), apresentado por meio do PL 4045/2020, as empresas que optassem por pagar o débito à vista até 30 de dezembro de 2020 teriam redução de 90% nas multas de mora e de ofício, 50% nas multas isoladas, 60% dos juros de mora e 100% sobre encargos legais.
A quantidade de prestações poderia chegar a 120 e a parcela mínima seria de R$ 10 mil, para pessoas jurídicas, e R$ 1 mil, para pessoas físicas.
O PREX-Brasil, conforme proposto, permitiria uma negociação extraordinária com a União de dívidas de natureza tributária ou não tributária. Entre as principais características do PREX-Brasil, Renato da Fonseca destaca as amplas condições de uso de créditos tributários, próprios e de terceiros, para a compensação com as dívidas tributárias, e o uso de precatórios para a quitação de dívidas de qualquer natureza.
“Outro ponto muito favorável do PREX-Brasil é a monetização do prejuízo fiscal em 2020, permitindo que os prejuízos amargados pelas empresas este ano sejam convertidos em créditos e ressarcidos em dinheiro”, afirma o gerente-executivo da CNI. Além disso, diz ele, a proposta avança ao flexibilizar as exigências de garantias. Isso é importante porque tais garantias representam elevados custos para as empresas, o que, muitas vezes, inviabiliza a adesão delas a esse tipo de programa de renegociação.
Na avaliação da advogada Ariane Guimarães, sócia do escritório Mattos Filho, medidas adicionais de auxílio como essas são importantes para garantir fluxo de caixa para as empresas na recuperação econômica pós-pandemia. “Não há uma retomada pujante que seja suficientemente forte para fazer frente ao acúmulo de duas competências. Encontramos, no cenário brasileiro, inadimplência em vários setores”, informa a advogada. Segundo Ariane, um programa de renegociação permite às empresas um melhor planejamento diante de um cenário ainda com muitas incertezas.
Estudo da Cepal
Estudo divulgado em julho pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) avalia que a recuperação econômica será mais lenta e gradual do que o inicialmente esperado. Além disso, a instituição acredita que, apesar das medidas emergenciais adotadas pelos governos latino-americanos, serão necessárias medidas adicionais de ampliação de prazo e de alcance das linhas de crédito para garantir fluxo de caixa para as empresas, de modo a evitar a destruição da capacidade de produção e dar apoio às grandes empresas de setores estratégicos mais afetadas pela crise.
Entre as medidas que a Cepal lista para garantir fluxo de caixa para as empresas, principalmente as de porte pequeno ou médio, estão a postergação ou o cancelamento do pagamento de impostos, o adiantamento de crédito tributário e a flexibilização das condições para concessão de financiamentos por parte das instituições financeiras.
“Devem ser reforçadas as operações de crédito por meio dos bancos de desenvolvimento, que têm mais condições de assumir riscos associados às empresas de menor porte”, recomenda o estudo da Cepal.
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