Utilitários Contábeis

Lucro contábil e lucro real: é preciso (re)discutir contabilidade no país


20/06/2024
Brasil
Conjur

Os novos contornos legais do processo político-normativo contábil doméstico e a maior relevância conferida à neutralidade tributária, no contexto da adoção dos padrões internacionais de contabilidade (IFRS) no Brasil, permitiram que as normas contábeis passassem a exibir uma maior independência ante as exigências de natureza tributária, cujo efeito direto foi o maior distanciamento entre os lucros contábil e real, o que passou a exigir a manutenção de controles adicionais e um acompanhamento mais sofisticado, introduzindo ainda mais complexidade à apuração tributária.

Um fenômeno observado nesse novo cenário é a utilização de conceitos e requisitos previstos nas normas contábeis, sem que sequer sejam respeitados os seus próprios fundamentos e significados, com o fim meramente tributário.

 

Muita confusão tem sido criada, seja de forma intencional ou por mera incompreensão; o que não só afeta a tributação, mas também a própria qualidade da informação contábil. Efeito adverso que se buscou evitar com todo o aparato legal construído, notadamente pela Lei nº 12.973, de 2014, visando assegurar a neutralidade tributária e oferecer uma maior autonomia para as normas contábeis.

A introdução indevida da perspectiva da entidade econômica no plano da pessoa jurídica, que pode gerar inúmeras tensões conceituais, em especial, em relação ao goodwill, e a aplicação inapropriada de conceitos e procedimentos contábeis relacionados às subvenções governamentais, no contexto do tratamento tributário dispensado aos incentivos e benefícios fiscais ou financeiros-fiscais do ICMS, são situações que podem ilustrar parte da confusão instalada.

Divergências e fonte de tensão

Esse fenômeno encontra terreno fértil nas divergências estruturais entre o modelo IFRS e o modelo da tributação sobre a renda. Embora tais divergências possam ser conciliadas operacionalmente, esses modelos não podem coexistir em um mesmo plano, são conceitualmente distintos e, arrisco-me a dizer, mutuamente exclusivos, uma vez que perseguem objetivos diversos e adotam perspectivas diferentes.

Ademais, apesar de o processo dinâmico e contínuo de revisão e evolução dos IFRS ser necessário para a contabilidade, ele é uma fonte inesgotável de tensão. Embora seja necessário eliminar, no plano contábil, as “amarras” legais para tal processo evolutivo, elas são imprescindíveis no plano tributário.

É preciso discutir, mais uma vez, essa relação e o momento atual aparenta ser muito oportuno, tendo em vista o debate acerca da eliminação das determinações contábeis da Lei das S.A. e a reforma da tributação sobre a renda, que, muito em breve, estará na pauta do país.

Um aspecto preliminar a ser considerado é que os problemas existentes possuem características distintas entre os segmentos empresariais e os regimes tributários, sendo assim, não existe uma solução abrangente que seja a panaceia.

O debate precisa contemplar a regulação contábil doméstica, especificamente no que se refere à adoção dos IFRS, ao tempo que deve reconhecer que a legislação do IRPJ é elemento indissociável da prática contábil brasileira, de modo que a avaliação de qualquer alternativa deve pesar e sopesar os seus efeitos tanto no plano contábil quanto no tributário, sob pena de criar um cenário ainda pior do que o atual para todas as partes.

Lucro real

Naturalmente, o segmento que requer atenção é aquele formado pelas entidades tributadas com base no lucro real, que corresponde a, aproximadamente, 222 mil pessoas jurídicas, dentre as quais figuram a esmagadora maioria das companhias abertas (senão todas) e as sociedades de grande porte.

Uma alternativa que sempre é discutida é a criação de uma escrituração contábil, exclusivamente, para fins tributários (“contabilidade fiscal”), cujas regras gerais (reconhecimento, mensuração, escrituração, demonstrações etc.) seriam definidas em lei (tributária), a qual conferiria competência para a Receita Federal para regulamentá-las. Tais regras seriam totalmente independentes das normas contábeis, que, por sua vez, gozariam de plena autonomia. O lucro apurado na contabilidade fiscal seria o próprio lucro real.

O resultado direto dessa solução seria a manutenção de duas escriturações, o que traz à tona diversas questões relacionadas à sua efetividade e à sua viabilidade; e quanto a quem seriam, de fato, os beneficiados. Pensando rápido, creio que esse também seria o resultado na hipótese de eliminação das determinações contábeis da Lei das S.A.

Conceitualmente, já existe uma contabilidade fiscal. Contudo, ela não se materializa por meio de uma escrituração na forma contábil, mas sim, por meio de ajustes realizados naquilo que é objeto da escrituração contábil. Tais ajustes acabam sendo uma extensão da própria contabilidade, o que, há algum tempo, já se incorporou à prática contábil e as soluções tecnológicas foram construídas sob perspectiva, ao tempo que contribuíram para consolida-la.

A instituição formal de uma contabilidade fiscal traria inúmeros ganhos, especialmente, para a tributação, uma vez que eliminaria a confusão gerada pelas divergências estruturais hoje existentes, sem falar que também ofereceria maior estabilidade, tendo em vista que as regras tributárias não seriam afetadas pelas constantes mudanças dos IFRS.

No entanto, a própria contabilidade brasileira poderia sofrer um retrocesso, isso porque, excetuadas as pessoas jurídicas objeto de alguma regulação econômico-setorial específica, a exemplo das companhias abertas e das instituições financeiras, haveria uma tendência natural de as demais adotarem, exclusivamente, as normas fiscais.

Muitas empresas não têm obrigação de submeter as suas demonstrações à auditoria, tampouco possuem obrigação de divulgá-las, assim a aplicação obrigatória dos IFRS não se mostra como algo dogmático hoje. Inclusive, é provável que esse conjunto normativo já não esteja sendo aplicado por tais empresas, desse modo, a adoção de uma contabilidade fiscal traria impactos pouco significativos para esse segmento, se é que traria algum, facilitando ainda mais a sua adoção. Neste caso, o impacto efetivo seria o total abandono da adoção da norma contábil; externalidade que consideramos uma das mais preocupantes.

Lucro contábil

Outra alternativa é a adoção do lucro contábil, determinado de acordo com as normas contábeis vigentes, como expressão da renda tributável das pessoas jurídicas. Tal convergência parece ser ideal, no entanto, exigiria inúmeras modificações nas regras de incidência do IRPJ e da CSLL.

Surgiriam alguns impedimentos já no plano constitucional e nas regras gerais contidas no Código Tributário Nacional. Requisitos relacionados à reserva legal, à própria definição de renda, à definição do fato gerador e à competência da União poderiam ser violados, uma vez que, no final das contas, essa tributação seria determinada pelos entes reguladores, dotados de competência legal para dispor sobre normas contábeis.

É possível reformar a Constituição nessa direção? É possível reformular o CTN do mesmo modo? Confesso que não sei…. De todo modo, tais mudanças seriam um movimento, no mínimo, desproporcional e injustificado, considerando o problema que visa solucionar.

Contudo, sob um olhar mais pragmático, sem que fossem realizadas mudanças tão estruturantes, parece que seria possível admitir, sim, que o lucro contábil pudesse representar a expressão da renda para fins de tributação, no entanto, haveria um preço: a imposição do objetivo tributário na própria regulação contábil, de modo que a normatização contábil seria descaracterizada.

Essa possibilidade iria exigir a reformulação do arcabouço regulatório contábil brasileiro, de modo a afetar a competência e autonomia dos reguladores no que se refere à definição de normas contábeis. Esse cenário também nos parece totalmente despropositado, sem falar que seria um enorme retrocesso. Definitivamente, não há espaço para isso.

DRF

A instituição da demonstração do resultado fiscal (DRF), proposta apresentada pela RFB há alguns anos, é mais uma possibilidade. Em linhas gerais, o lucro real seria apurado diretamente na DRF, sem a necessidade de adições, exclusões e compensações. Receitas e despesas consideradas nessa apuração seriam definidas, reconhecidas e mensuradas de acordo com as disposições da legislação tributária (muitas já existem hoje). A vinculação com a contabilidade seria mantida de forma indireta.

Essa proposta não foi muito discutida, de modo que não foram evidenciados os possíveis ganhos que ela poderia oferecer. No entanto, um ganho potencial seria assegurar uma maior estabilidade para a tributação e uma menor interferência dos conceitos contábeis.

Por outro lado, haveria incentivos para que as empresas não obrigadas à divulgação em IFRS também só adotassem as regras tributárias, de modo a ficarem mais aderentes à DRF, evitando a manutenção de controles adicionais. Isso também levaria ao abandono das normas contábeis. Já para aquelas obrigadas a adotar os IFRS, possivelmente, surgiria a necessidade de manutenção de duas contabilidades.

Laluc

O livro de apuração do lucro contábil, o Laluc, merece ser lembrado. Essa alternativa foi inserida na Lei das S.A. pela Lei nº 11.638, de 2007, mas foi logo revogada pela Lei nº 11.941, de 2009, não chegando a ser implementada.

O Laluc propunha a inversão da lógica da relação entre lucro contábil e lucro real; a escrituração seguiria a regra tributária e, em uma escrituração auxiliar, o Laluc, as pessoas jurídicas fariam ajustes para apurar o lucro societário, de acordo com os IFRS.

De pronto, é possível vislumbrar que o Laluc somente seria adotado por aquelas entidades obrigadas à divulgação em IFRS. Desse modo, as demais entidades manteriam a escrituração com base nas regras tributárias, o que seria respaldado pela própria Lei da S.A., o que, inevitavelmente, seria reverberado para as entidades não sujeitas a tal lei. Assim, prevaleceria a contabilidade fiscal para todas, com o possível abandono das normas contábeis e a necessidade de manutenção de duas escriturações para aquelas obrigadas a divulgar em IFRS.

O fato é que, seja qual for a alternativa a ser adotada, parece que estaremos correndo o risco de instituirmos, formalmente, uma contabilidade fiscal, implicando no abandono das normas contábeis por parte daquelas entidades não obrigadas a adotar os IFRS; ou de oferecermos incentivos mais do que suficientes para que isso aconteça.

Denominador comum

Em meio a tudo isso, parece ser necessário que contemos com uma alternativa capaz de equacionar as diferenças regulatórias e a falta de harmonização doméstica da contabilidade, preservando o objetivo desta, ao tempo que atenda os interesses tributários sem resultar em um distanciamento excessivo entre os lucros contábil e real e, o mais importante, sem impor custos adicionais. Talvez, isso não seja possível de forma plena, no entanto, sinaliza a direção que deve ser tomada.

O caminho pode ser a instituição de um conjunto normativo que seja um denominador comum; o que poderia ser alcançado por meio da instituição, no plano legal, do Padrão Nacional de Contabilidade (PNC), cuja regulamentação seria realizada por comitê técnico composto por representantes dos entes reguladores, a exemplo do CFC e da CVM, bem como pela RFB, e se efetivaria por meio de Decreto do Poder Executivo.

Com o PNC, estabeleceríamos um ponto de partida harmônico para a contabilidade brasileira, voltado, principalmente, para a escrituração comercial. Daí cada regulador, no âmbito das suas respectivas competências, definiria suas regras específicas. Esse denominador comum seria próximo das regras tributárias, de modo que não exigisse muitos ajustes, permitindo uma maior proximidade entre os lucros contábil e real. Por exemplo, a avaliação ao valor justo e o método da equivalência patrimonial poderiam ser dispensados.

Isso parece absurdo? Inviável? Impossível? De fato, em um primeiro momento, sim. Mas, é só aparência mesmo. Para mais de 95% das empresas brasileiras, por meio das NBC TG 1001 e 1002, o CFC, no uso da sua atribuição legal, já instituiu um padrão nacional. E se a lei tributária determinasse que o lucro ponto de partida para a determinação do lucro real fosse apurado de acordo com a NBC TG 1001? Não haveria nenhum absurdo nisso.

Haveria mais estabilidade no PNC; o que não quer dizer que ele seria imutável. Seria algo impensável conceber um modelo contábil estático. A contabilidade brasileira seguiria, no seu ritmo, a sua própria agenda, desvinculada da agenda do International Accounting Standards Board (IASB), esta seria observada pelas entidades sujeitas aos IFRS.

Contudo, ao nosso ver, o aspecto que pode ser mais sensível é aquele relacionado às companhias abertas. Para esse segmento, não se pode vislumbrar a adoção de um padrão contábil diferente dos IFRS, tampouco, restringir a competência regulatória da CVM. E, definitivamente, com o PNC isso não iria acontecer. Muito pelo contrário!

Teríamos algo similar ao proposto para o Laluc. No âmbito da escrituração, seria observado o PNC, a partir daí, seria possível fazer alguns ajustes de modo a permitir o reporte em IFRS. Como qualquer outra solução, haveria custos, é verdade, no entanto, isso tenderia ser em um primeiro momento. É provável que o aumento dos ajustes no plano contábil seja compensado pela diminuição dos ajustes no plano tributário.

Outro ponto sensível no âmbito das companhias abertas seria a definição do lucro para fins de distribuição. Essa definição requer uma discussão aprofundada e caberá à lei societária. No entanto, para tais entidades, seria razoável que o lucro fosse aquele apurado à luz das normas emitidas pela CVM, ou seja, o lucro reportado com base nos IFRS.

Além de tudo que foi dito aqui, devemos reconhecer que haverá implicações significativas com a tributação sobre a distribuição de lucros ou dividendos e a adoção do Pilar 2. Em se concretizando tais medidas, teremos uma reconfiguração do cenário atual, o que adicionará novos componentes ao debate.

Conclusão

O fato é que, realmente, há muito o que se discutir sobre o assunto e o PNC também merece ser considerado. Ele representa uma alternativa que fortalecerá a regulação contábil e atenderá o objetivo da esmagadora maioria das entidades e dos respectivos usuários da informação contábil; criará um ambiente que facilitará a harmonização doméstica; e permitirá que o processo de adoção dos IFRS siga o seu próprio rumo, em direção àquelas entidades que sempre buscou alcançar. E, de quebra, vai reduzir boa parte das tensões hoje existentes entre os lucros contábil e real. Vamos ao debate!


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